sexta-feira, abril 20, 2007


Como é que se usa um telemóvel? Ou um telefone, para ser o mais genérico possível? O uso que eu dou ao telemóvel não é muito saudável. Supostamente deveria ser o uso correcto, pois mal toca, vou em sua busca, independentemente do que esteja a fazer. Será este o uso correcto? Não, definitivamente não é. O telefone é um acessório do nosso dia-a-dia. Existe para facilitar algumas coisas, não para condicionar os nossos dias. A Paula sabe utilizar o seu telemóvel. Atende apenas quando está disponível para isso e por isso irrita muita gente inclusivé a mim. Mas na verdade ela está coberta de razão. Porque é que se deve atender sempre um telemóvel, mesmo que não nos apeteça? E porque é que as pessoas ficam chateadas pela sua chamada não ter sido atendida? Estamos de tal forma condicionados por estes espartilhos de hábitos sociais que muitas vezes quando toca o telefone e não nos apetece atender, forçamo-nos a nós próprios a perder tempo de vida com aquela chamada, não porque necessitamos, mas com o medo que a outra pessoa fique ofendida. Eu automaticamente penso assim e muitas vezes dou por mim a julgar a paula, incorrectamente, pelas suas opções de liberdade quanto ao telemóvel. Na verdade nem sequer são opções de liberdade... nem sequer é uma opção, é apenas a forma como encaramos e queremos encarar a nossa forma de viver, o ritmo que queremos impor ao nosso modus-vivendi, e o ritmo da paula é que está correcto. A tirania do telemóvel está a chegar ao fim. Embora importante para a nossa vida, ele não deverá ser essencial. Não é fácil acabar com esta tirania, mas temos de fazer um esforço para que a nossa vida se torne um pouco melhor, um pouco menos stressada.

O João Pedro anunciou ontem aos pais que está à espera de um filho. Mais um primo para o Afonso e a Carolina. deverá nascer em Novembro. Estamos muito contentes.

Despedimos o carpinteiro. Ainda falta colocar as portas, ferragens e acabar uma parte do deck exterior. Acabou-se a paciência. Foi posto na rua e não vai ver nem sequer mais um tostão. Apesar de tudo ficou-nos barato os seus serviços, mas se formos ver os danos de tempo e paciência que este sujeito nos provocou saímos claramente a perder. Será que não existem empreteiros e homens das obras sérios? Tem de existir.

A cozinha ficou pronta no início da semana. Lindissíma, branca co brilho tipo branco iPod e com todas as funcionalidades pensadas ao pormenor pela paula. Por exemplo, a tábua de cortar pão está inserida dentro de uma gaveta com um recipiente próprio para isso. Acaba-se de cortar o pão fecha-se a gaveta e puff. Nada de migalhas, nem coisa espalhadas. São estes tipos de detalhes de ergonomia que a paula é fantástica a pensar.

Já temos o nosso novo iPod de 80GB. Estou em fase de passar toda a nossa música do anterior para o novo. Menos versátil em termos destes procedimentos, infinitamente mais bonito e poderoso que o anterior da creative.

Como pensamento positivo para hoje deixo o iPod. Ainda estou a aprender a trabalhar com ele, mas parece-me estupendo e fora de série. E impressionamente a capacidade destas novas geringonças que nos permitem ter uma discoteca de cerca de 1500 albúns num dispositivo daquele tamanho. Este aparelho está a mudar a face da indústria musical. Não são só as editoras e as lojas de música que estão ameaçadas. São também os fabricantes de CD's. Isto está a levar uma grande volta. Sem dúvida, juntamente com a nespresso, um dos principais ícones desta primeira década do século XXI.

quarta-feira, abril 18, 2007


Acabei de escrever o meu primeiro conto. Foi um desafio lançado pelo CineClube de Terror de Lisboa para escrever um conto de terror.

Ainda não está perfeito mas foi o meu primeiro ensaio. A trama não está muito bem sacada e vive de alguns lugares comuns que me irritam.

Fica aqui para a posteridade e sujeito à apreciação de quem quiser. Comentários e sugestões são muito bem vindos (Edgar Pó foi o pseudónimo que escolhi, fazendo naturalmente um tributo ao grande mestre destas andanças - Edgar Alan Poe).


Type O Negative
por EDGAR PÓ


O meu nome é José Carlos Teia e eu estou... aterrorizado!
Já lá vão 47 dias desde que estou encerrado neste quarto e a única forma que eu tenho de comunicar com o mundo exterior é através desta via. Todas as outras vias de comunicação foram cortadas e como companhia restam-me alguns enlatados, um computador antiquado, um poster de parede dos Type-O- Negative e uma cadeira barcelona, que não me serve de nada, pois não tenho mesa para colocar o computador.
Mas vamos começar desde o início, para que compreenda a minha agonia e para que eu lhe dê alguns argumentos que sustentem a sua decisão de ajudar, ou se for tarde de mais, de revelar ao mundo a minha infeliz história para que ela não se repita com mais ninguém, pois nenhum ser humano deve ser sujeito a este tipo de pressão, a esta agonia que se apoderou de mim e que me drenou de todas as emoções, de toda a lógica.
Tudo começou à cerca de dois meses. Estava uma manhã lindíssima, cheia de sol e depois de tomar o pequeno-almoço com a minha mulher e os meus dois filhos gémeos, dirigi-me para a paragem de autocarro do costume, para apanhar o autocarro nº 74 em direcção à estação de comboios. Entre apanhar o comboio e o meu local de trabalho medeiam cerca de 35 minutos que costumo investir na leitura, nunca perdendo de vista a paisagem que desfila na janela e as pessoas que partilham comigo estes espaços móveis.
Esta é a minha rotina habitual que faço desde há mais de 10 anos para chegar ao meu emprego. É uma rotina que prezo e que de alguma forma me relaxa antes de me dedicar às minhas obrigações profissionais e familiares. É aquele momento em que não tenho necessidade de encarnar um papel ou de fazer as coisas por forma a agradar a quem está à minha volta. Todos os dias encontro e reencontro pessoas que desfilam à minha frente de uma forma descomprometida, sem preocupações além de apanhar os transportes às horas certas, para chegar a tempo aos seus empregos e então assumir as suas personagens construídas ao longo de anos que lhes garantem um determinado espaço nas suas realidades. Durante estes percursos estas pessoas, e eu próprio, não existimos. Estamos em transicção para as nossas vidas que começam realmente dentro de momentos. É uma espécie de limbo, de hall de entrada para um palco à nossa medida.
Com o passar dos tempos, aprendi a gostar destes momentos. Tenho uma profissão moderna, com relativo sucesso e numa empresa jovem, muito dinâmica e sem grandes preocupações de horários ou formalidades, por isso, consigo desfrutar destes momentos de uma forma muito própria, muito minha.
Nessa manhã, reparei no condutor do autocarro. Era um jovem com um olhar vivo e uma expressão simpática. Tinha uma postura orgulhosa como que a cortar com todos os estereótipos construídos à volta desta profissão. Era bonito, mas não o suficiente para se reparar, o que fazia dele uma pessoa agradável. Não consegui deixar de notar nele por estas razões e pelo facto de a sua cara não me ser estranha. Na altura eram pensamentos momentâneos que se apagam a partir do momento em que atingia a parte de trás do autocarro para conseguir um lugar vago.
Até aqui, nada de estranho se passou e nenhuma razão existe para que fique aponquentado, mas por favor, continue a ler. Não pare de ler, pois preciso desesperadamente da sua ajuda...
Quando entrei no comboio é que as coisas começaram a ganhar uma dimensão estranha. Sentei-me, como de costume, na segunda carruagem, no sentido inverso da locomoção do comboio e peguei no meu livro para devorar mais um capítulo. Após o comboio ter iniciado a sua marcha, 2 minutos depois, veio o revisor verificar o meu título de transporte. Já o tinha a postos por forma a ser revelado sem tirar os olhos do meu livro, mas naquela manhã, olhei nos olhos do revisor e para meu espanto a sua cara pareceu-me idêntica à do condutor do autocarro. O mesmo olhar, a mesma postura, o mesmo orgulho. Dei um salto no assento como que assustado, razão para que o revisor fizesse precisamente o mesmo, assustado com a minha reacção. Fiquei paralisado. Sem saber o que fazer. Ele perguntou-me – “o seu bilhete por favor” – ao que imediatamente lhe revelei o meu passe de uma forma mecânica, mas sempre com os olhos colocados nos olhos dele. Verificou o passe e de seguida perguntou-me, tal era a minha expressão – “Está tudo bem? Passa-se alguma coisa consigo?”
A voz custou-me a sair e quando se materializou, retorqui-lhe – “A sua cara não me é nada estranha. Peço-lhe desculpa pela minha reacção, mas deu-me a sensação que o tinha visto agora mesmo a conduzir um autocarro”.
As suas sobrancelhas franziram-se e respondeu-me – “É possível que me tenha visto no autocarro, mas certamente que não ao volante e isso foi cerca das 7 da manhã”. Sorriu e eu, de imediato, pedi desculpa pela confusão antes de ele seguir caminho para o próximo passageiro.
Continuei preplexo, convencido de que me tinha enganado e inclusivé esbocei um sorriso por forma a afastar esta nuvem de dúvida, sorriso esse que se esbateu no momento em que olhei para o meu passe e constatei que estava escrita uma mensagem num vermelho tipo sangue com os números 7 e 4 desenhados de uma maneira tosca. Ainda olhei em direcção do revisor que no momento atravessava de uma carruagem para outra através da porta que as separa. Reparei que esboçava um sorriso enquanto atravessava a porta.
O meu primeiro impulso foi levantar-me a correr atrás dele, mas depois o medo apoderou-se de mim e transformou as minhas pernas em dois barrotes de chumbo impossíveis de serem movidas. Tentei acalmar-me e convercer-me de que nada disto era real, mas ao olhar de novo para o passe e constatar nos dois números desenhados, inundou-me um sentimento de terror que me tem perseguido até a este momento em que lhe escrevo esta mensagem.
O dia passou-se normalmente sem mais acontecimentos dignos de registo, mas eu estava esfrangalhado. Não consegui pensar em mais nada. E mais catastrófico se tornou quando tomei consciência de que os números que estavam no passe correspondiam aos números do autocarro que eu normalmente apanhava – o nº 74. Seria uma mensagem subliminar para eu apanhar o autocarro na volta, ou uma simples coincidência? Que haveria eu de pensar desta ocorrência? Estaria a exagerar? Estaria a ficar louco? Os acontecimentos seguintes iriam revelar e clarificar toda esta confusão que me levou a este estado miserável.
Tentei concentrar-me no meu trabalho, mas não consegui. Não me saía da cabeça o momento de sair do trabalho, meter-me no comboio, sair na estação e apanhar aquele misterioso autocarro. Mas o que mais me irritava era a sensação que se apoderava de mim, de que tudo isto era um engano, uma coincidência que eu estava a transformá-la em algo extraordinário, algo que apenas acontece nos filmes e nas histórias de terror e mistério. Poderia ser uma defesa para a minha rotina diária, uma necessidade de criar alternativas ao “ram-ram” do meu quotidiano. Mas esse cenário, a acontecer, tomava a forma de um cenário doentio, pois este bocado da minha vida, esta transicção entre vidas, era um momento que eu prezava e que ansiava todos os dias da semana. Bom, por vezes, fazemos coisas comandadas pelo nosso subconsciente que são contrárias à nossa vontade, mas como irá ver mais à frente, tal não era o caso. Havia, de facto, razões para me preocupar e agora estou aqui, acossado e aterrorizado, muito por culpa de não ter tomado atenção a estes sinais.
Bom, mas voltando ao que interessa. O dia acabou e ao longo dele consegui dissipar muitos destes anseios, destas premonições geradas por aquela misteriosa personagem, de tal forma, que por volta das sete horas da tarde, hora a que habitualmente saio da empresa, aquele momento de terror foi adquirindo contornos quase cómicos e o que de manhã tinha sido um evento estranho, ganhou um estatuto de coincidência cómica no fim da tarde. Mas havia algo que me incomodava, algo que carecia de uma explicação lógica e que me deixava incómodo, irrequieto e desconfortável, muito desconfortável.
A caminho da estação, passei pelo café onde habitualmente almoço e em vez de seguir caminho, parei para tomar um café e comer uma chamuça, coisa que nunca faço. Deverá compreender que sou um homem de rotinas e que para mim elas são, na verdade, o sal da minha vida. Gosto de roteiros diários traçados ao milímetro e de os cumprir escrupulosamente, mas de uma forma natural, não compulsiva, por isso parar, ao fim da tarde, no café para beber um café, foi um acto de absoluta originalidade para mim. Mas não foi inocente ou impulsivo. Foi, na verdade, um acto de quase cobardia. Eu estava com medo de encontrar o revisor-condutor de autocarro novamente, por isso tinha que quebrar a minha rotina por forma a não me cruzar com ele. Na altura estes pensamentos não eram claros para mim. A vontade de beber um café e comer uma chamuça pareciam-me reais e genuínos, mas lá no fundo eu sabia que tinha de reagir e evitar um encontro como aquele encontro matinal durante o qual o meu passe ficou manchado com o número 74. A propósito, o meu passe continuava a ostentar esse número. Não o consegui apagar, não porque tentasse, mas por receio de que algo acontecesse, voltei a meter o passe no bolso e não pensei mais nisso. Um misto de medo e curiosidade assaltava-me e quis manter o número para que todos os meus sentidos tivessem alerta aquando do momento da volta, este preciso momento que agora lhe estou a contar.
Sai do café sem pressa nenhuma e dirigi-me para a estação dos comboios. Até lá chegar são cerca de 10 minutos a andar e desta vez fiz este trajecto na maior das calmas, observando todos os pormenores que fazem parte daquele caminho que faço pelo menos 2 vezes por dia ao longo dos últimos dez anos. Consegui chegar à estação precisamente 3 comboios a seguir ao que normalmente apanho e quando avistei o comboio ao funda linha, senti um pequenos aperto no coração. Será que ia cruzar-me com o sujeito?
O comboio deu entrada na plataforma e as portas escancaram-se à minha frrente à espera de serem abertas. Respirei fundo e sorri para mim mesmo. As portas abriram e entrei de olhos fechados dentro da carruagem. Procurei um lugar vazio e reparei que todos os lugares estavam tomados, de forma que tive por optar pelos bancos junto à porta da entrada da carruagem – refira-se que apesar de parecer uma situação normal, nunca me tinha ocorrido a esta hora, uma vez que eu faço o trânsito ao contrário. Mas como tinha apanhado um comboio a uma hora que habitualmente não apanho, na altura encarei como normal.
A viagem decorreu normalmente, sem qualquer incidente. Ninguém se manifestou e inclusivé não apareceu nenhum revisor a verficar os títulos de transporte. Foi simultaneamente um alívio, mas com uma pontinha de frustração. Há qualquer coisa dentro de nós que numa situação de ansiedade dispara um botão de alarme para que as coisas se resolvam rapidamente mesmo que implique algum risco. Era disso que eu estava à espera. De encontrar uma solução para o estranho acontecimento matinal. Mas tal não aconteceu. Estavamos a chegar à estação terminal e nada. Mas nada mesmo...
Agora impunha-se a confrontação com uma nova situação. Apanhar o 74 em direcção a casa. Não esqueçamos que o condutor do autocarro e o revisor do comboio tinham semelhanças evidentes que me levaram a pensar que seriam a mesma pessoa, e também a marca deixada pelo revisor no meu passe era o número do autocarro que eu normalmente costumava apanhar. O meu primeiro impulso foi correr para a paragem do 74 e apanha-lo para chegar rápido a casa e se possível encontrar o mesmo condutor e tirar tudo a limpo. Na verdade já estava num estado de nervos com uma pitada de euforia à mistura que resultava numa situação de algum descontrolo emocional. Queria resolver isto. Queria chegar a casa com as minhas dúvidas dissipadas e contar o que se tinha passado a minha mulher e aos meus filhos. Queria acabar com isto de uma vez por todas, tal era o cansaço que se tinha apoderado da minha mente, resultante de um dia inteiro a pensar naquele breve encontro no comboio. Sabia lá eu no que iria dar. Pobre mim e já agora pobre de si que está a ler esta mensagem , pois caso opte por fazer alguma coisa irá meter-se na boca do lobo, ou se pelo contrário, não fizer nada vai viver o resto da vida na dúvida e com a consciência abalada por tudo aquilo que irá ler nestas linhas.
Decidi não apanhar o 74. Optei por outra paragem de autocarro, bem longe daquela, aliás, que me deixaria relativamente perto de casa, apesar de ter de andar cerca de 10 minutos a pé até atingir o meu destino.
Apanhei o 110, no lado contrário da praça de autocarros que fazia o trajecto inverso ao 74. Levaria cerca de 50 minutos nesta viagem ao contrário dos habituais 10 a 15 minutos que gastava no 74. Dissipei todas as minhas dúvidas, ou melhor, arranjei todas as desculpas possíveis para justificar a minha mudança de planos. Como já lhe referi anteriormente, as rotinas, para mim, são essenciais. São os meus pequenos vícios a que recorro para fazer dos meus dias, momentos interessantes. De tal forma isto cortava com a minha rotina que tinha de inventar todas as desculpas para justificar esta mudança de planos.
E assim foi... Apanhei o 110 para retornar a casa pelo lado errado da cidade. O autocarro, tinha cerca de 4 pessoas e com a confusão entretanto gerada dentro da minha cabeça, não tomei atenção ao condutor. E porque haveria de tomar? Era um autocarro diferente que estava a apanhar. Mais um erro que cometi ao entrar dentro daquele malfadado autocarro. Pobre de mim...
Esperei cerca de 3 minutos antes do autocarro iniciar a sua marcha, sentado no segundo banco do lado esquerdo da parte de trás do autocarro. À minha frente estava uma senhora a mandar mensagens do telemóvel e atrás de mim 2 crianças acompanhadas pelo pai observavam o terminal de autocarros com alguma supresa e entusiasmo à mistura. Deveriam ser de fora da cidade.
O autocarro iniciou a sua marcha e já eu estava agarrado ao meu livro. Subitamente, lembrei-me de que deveria tentar olhar para o condutor para ver se desta vez não se assemelhava ao meu suposto perseguidor matinal. E assim o tentei fazer. Estiquei o meu pescoço para ver se o conseguia vislumbrar através do espelho retrovisor e aí nesse momento, precisamente nesse momento, começou o meu calvário que me levou a este estado de absoluta decadência, medo... de absoluto terror...
Os destinos do 110 estavam entregues, precisamente ao revisor/condutor de autocarro que apanhei no meu trajecto matinal. Quis gritar, mas não me saiu qualquer voz pela boca e em troca recebi uma gutural gargalhada emitida pelo condutor. E o mais estranho era que ele nem sequer abriu a boca. A gargalhada surgiu na minha cabeça, assim, sem mais nem menos. Fiquei numa espécie de estado de choque incapaz de pensar ou agir. O autocarro entretanto enveredava por caminhos que não conseguia identificar e a paisagem através da janela deixou de ser nítida para se transformar numa espécie de visão da paisagem a derreter-se lentamente em tons de castanho e rosas que se misturavam numa espécie de morphing diabólico... Estava confuso, estava em pânico e totalmente paralisado, sem capacidade de raciocinar ou sequer de encenar algum movimento, alguma reacção naquele cenário Dantesco. Pensei que tinha desmaiado, tal era a violência daquela constatação, mas estava bem acordado, mas incapaz de ver, sentir ou reagir. Tudo estava em absoluta comoção naquele autocarro, naquela horrível nave que agora começava a atingir velocidades assustadoras com o vidro da frente a embater em formas horrososas que pareciam que ganhavam vida quando se esmagavam mesmo à nossa frente. Começa a entender o pânico pelo qual passei? Então tenha mais um pouco de paciência pois ainda estamos no início.
A voz gutural do revisor/condutor de autocarros estava dentro da minha cabeça, ecoando com um volume cada vez alto, mais infernal, no entanto traduzida apenas em sons insuficientes para fazerem qualquer sentido. Nesta altura reparei que a sua voz, desde a gargalhada inicial nunca tinha parado dentro da minha cabeça, no entanto com um volume baixo. Agora que o volume começava a aumentar é que dei pela sua presença, desde que constatei o terror em que estava envolvido. De tal forma atingiu um volume tão alto que tive que colocar as mãos na minha cabeça, a fazer pressão nas têmporas ao mesmo tempo que tapava os ouvidos. Solução insuficiente, pois ela estava dentro da minha cabeça. Gritei de tão insuportável que estava e virei-me para trás para acabar com aquele sofrimento atroz. Nesse preciso momento, a voz sessou e consegui abrir os olhos e de alguma forma recompôr-me. Pelas janelas já consegui descortinar uma paisagem, que embora desconhecida, tinha já um toque de normalidade o que me trouxe algum alívio. Nas parte de trás do autocarro continuavam as quatro pessoas que tinham iniciado a viagem comigo. Estavam a rir-se de uma forma estridente e pouco natural. Apontavam na minha direcção e os seus rostos estavam como que desfocados, difíceis de serem identificados. Percebi que durante o meu momento incial de terror se tinham juntado todos a um canto como que a assistirem à minha reacção e agora pareciam uns comentadores toscos que se banqueteavam com o que tinham visto.
No minha cabeça, a voz tinha desaparecido por completo e, embora com algum movimento oriundo das janelas, o autocarro já se locomovia de uma forma normal. Avancei em direcção dos meus espectadores como que a pedir ajuda, como que a pedir-lhes que eles tivessem sentido o mesmo que tinha acabado de sentir e assim pudesse encontrar algum consolo naquele cenário. Tem de entender que eu estava desesperado, muito assustado e embora seria evidente que algo estava muito errado ali e nunca encontraria consolo naqueles seres, a minha reacção de ir ao encontro deles foi de desespero, mesmo sabendo que eles nunca me ajudariam.
Fui cabaleando em direcção aquelas personagens e uma das crianças saltou do seu banco e colocou-se à minha frente sempre com um sorriso. Parei e aquela distância consegui reconhecer o seu rosto e naquele momento solto um grito chamando o nome de um dos filhos. Não foi um grito à toa, pois à minha frente estava a cara e a cabeça de um dos meus filhos gémeos, embora o seu corpo não correspondesse à realidade. Era um corpo pequeno, exactamente do mesmo tamanho do meu filho, mas as suas proporções estavam erradas. Os braços eram de um homem exremamente forte, com pêlos e veias salientes, enquanto as suas pernas estavam cobertas por um manto gasto e velho que deixava entrever o brilho do metal. Eram próteses não acabadas, apenas com o metal à mostra e cobertas de manchas de sangue que jorava da parte de cima onde acabava a carne.
Gritei pelo nome dele, não com uma intenção de alívio, mas de puro horror ao constatar o estado do meu filho. O meu grito despontou ainda mais gargalhadas nos outros passageiros que agora, de uma forma instantânea, ostentavam os seus rostos perfeitamente visíveis e identificáveis. Como deve estar a prever, eram os rostos do meu outro filho, da minha mulher e do maldito revisor/condutor de autocarro que a abraçava com um braço e com o outro afagava-lhe o seio. Riam altíssimo, desta vez com as bocas a corresponderem aos sons que pairavam no ar. No momento não conseguia distinguir se eram sons verdadeiros ou se ecoavam na minha cabeça tal como as anteriores gargalhadas do revisor/condutor.
Desmaei, penso eu, pois ainda hoje não consigo estabelecer uma linha de tempo coerente que batesse certo com tudo o que estava a passar no autocarro nº74.
Tudo o que eu estava a assistir era grotesco e de uma violência para a qual eu não estava preparado. Talvez até nem tenha desmaiado. Talvez tenha entrado numa espécie de black-out para reunir forças, por forma a encarar o que ainda estava para vir. Como lhe digo, reinava a confusão na minha cabeça e ainda hoje reina alguma, com alguns detalhes imprecisos, mas limados de uma forma a tornar perceptível a si, que está a ler esta infortunada aventura.
Acordei com frio, mas desta vez rodeado de escuridão num espaço muito amplo. Estava nu, agrilhoado a uma parede húmida. Estive assim cerca de duas horas, sem qualquer vislumbre do que me rodeava. Com os meus gritos percebi que estava num espaço amplo e estava tão bem preso à parede que não conseguia mover-me de forma alguma. Estava aterrorizado no início, mas ao fim de meia hora passei do estado de terror a uma espécie de resignação. Tinha de esperar pelo que me iria acontecer. Os gritos não estavam a sortir efeito e o frio que estava a sentir no meu corpo começou a substituir o medo que atravessava a minha mente. Estava desesperado, sem forças e rendido aquela miserável condição de vítima. Estava prestes a entrar em colapso quando subitamente senti um toque no meu peito. Ao mesmo tempo abriram-se as luzes daquele imenso espaço e à minha frente estava o revisor/condutor de autocarro empunhando o seu sorriso. As vozes voltaram à minha cabeça, mas com murmúrios impreceptíveis. Perguntei-lhe o que queria de mim e como resposta obtive mais barulho na minha cabeça e a sua mão a enterrar-se no meu peito a ponto de me extrair todo o ar. Quase que desmaei novamente. Retirou a sua mão e os murmúrios que ecoavam na minha cabeça começaram a fazer sentido. Dizia-me que eu era um ser humano desprezível e que não merecia estar vivo. Que tudo o que tocava ou passava-me pelas mãos tornava-se obsoleto sem interesse e que por isso deveria morrer, deveria deixar de existir e deixar espaço a outros seres humanos mais válidos. Disse-me ainda muito mais coisas à volta disto, mas que não me consigo lembrar bem, pois várias vozes começaram a falar em simultâneo na minha cabeça. Foi uma lenga-lenga de cerca de 20 minutos sempre a deitar-me abaixo e a reforçar a minha condição de ser humano desprezível e sem utilidade. Desisti de tentar ouvi-lo e baixei a minha cabeça em direcção ao chão. Estive assim cerca de 5 minutos até ele acabar a sua ladainha e quando as vozes cessaram na minha cabeça, o revisor/condutor de autocarro afastou-se a apontou para o centro do armazém. Como que por magia, começaram a aparecer imagens que eu reconhecia. Os rostos que se cruzavam todas as manhãs comigo desde há mais de dez anos, os lugares por onde passava todos os dias em direcção ao meu trabalho, os corpos dos meus colegas movimentando-se no escritório, os meus filhos e a minha mulher à minha espera em casa, preparando uma surpresa aquando da minha chegada. Foram boas imagens que me fizeram sorrir ao mesmo tempo que chorava. Foi um bom momento no meio de tudo o que estava a passar.
As imagens lentamente foram passando de 2D para 3D e subitamente, mesmo ali à minha frente, observei as imagens a ganharem vida e a transformarem-se em realidade no interior do armazém onde estava. As pessoas falavam entre si, os seus pés faziam barulho ao deslocarem-se, o burburinho do dia-a-dia ganhava forma ali mesmo à minha frente, como por milagre.
Subitamente, todos param e olham na minha direcção e aquilo que era uma representação fiel da realidade que me rodeava todos os dias, transformou-se numa outra coisa inexplicável. Todos me identificaram, apontaram na minha direcção e começaram a deslocar-se na minha direcção. A deslocarem-se não... a correrem e a atropelarem-se para chegar até mim. No meio daquela confusão toda, vi a minha mulher a ser engolida pela multidão e os meus filhos a serem espezinhados como se de baratas se tratassem... Gritei com todas as minhas forças pelo nome deles, mas os meus gritos foram engolidos pelos gritos raivosos da multidão que corria, atropelava-se na minha direcção. Ainda assisti a vários colegas e amigos meus a ficarem sem olhos, sem partes do corpo que desapareciam no meio daquela mole que ganhava dimensões biblícas e que cada vez mais estava perto de mim. Aquilo era demais para mim. Aquilo era um suplício que eu não merecia. Estava perto da loucura.
A multidão estava já perto de mim e eu gritava só por gritar, sem qualquer sentido, sem qualquer intenção. Só me restavam os gritos e aos gritos recorria para combater o meu terror. Para ter uma ideia do que eu estava a passar, o barulho feito por aquela multidão era tal, que não consegui ouvir os meus próprios gritos. À medida que se aproximavam, consegui perceber que se queixavam, que também eles estavam a maldizer a minha existência, a clamar pelo meu nome seguido de classificações horrorosas da minha pessoa, das minhas vivências e dos meus actos. Desisti de gritar, pois já me tocavam e já consegui sentir os dedos deles a cravarem-se na minha carne. Senti o embate de todos aqueles que avançavam para mim. Foi de tal forma forte que, mais uma vez, perdi a respiração e quase que desmaiei, novamente. Tentaram arrancar o meu corpo da parede e não conseguiram à primeira tentativa, tal era a forma como estava preso. Investiram novamente e desta vez elevaram-me no ar, pois este era o único movimento que aquelas presilhas me permitiam, apesar de estar suspenso. Neste movimento consegui vislumbrar por cima das cabeças dos meus atacantes, o espaço à minha volta. Dezenas de corpos jaziam no chão, despedaçados pela violência da caminhada até à minha pessoa. Não consegui ver os meus filhos e a minha mulher, pois todos os corpos estavam bastantes danificados. Senti o sangue a subir pela traqueia e a alojar-se na boca quando aquele violento sacão chegou ao limite. Os meus músculos cederam com o impacto e rasgaram-se nos braços. A dor foi tão insuportável que me fez desmaiar, finalmente.
Aquele horror tinha acabado e em sua substituição veio em meu socorro sonhos de uma vida normal, de rotinas intermináveis e de sorrisos dos meus filhos e da minha mulher. Tudo isto sem dor, sem terror, sem medo. Estava a sonhar. Estava em tranquilidade e estva em paz.
Como deve calcular, foi uma tranquilidade que durou muito pouco tempo. Acordei neste quarto, precisamente à cerca de 4 horas, tempo que levei a escrever este manuscrito que espero que esteja a ler com toda a atenção. Os meus braços estão doridos e o meu corpo coberto de sangue. Não sei o que me irá acontecer, nem sei como lhe explicar isto. Sei apenas que me aconteceu e que tudo foi muito real. Sei que o número 74 tem um qualquer poder inexplicável capaz de transformar a sua vida de um momento para o outro. O que é que pode fazer? Pode denunciar este estranho evento a alguém correndo o risco de o chamarem de louco? Faça como quiser, mas divulgue-o e, por favor, denuncie o autocarro 74, denuncie os loucos que o conduzem e todos aqueles que me obrigaram a mim e se calhar a muitos outros a passarem por este tormento, por esta agonia, por esta violência.
Ouço barulho no exterior. São passos curtos e bem ritmados. Não consigo mexer-me, tal são as dores do meu corpo. A porta abre-se lá ao fundo e vejo dois vultos pequeninos empunhando uma espécie pau com uns ganchos na ponta.
Aproximam-se e começam a falar comigo. Não me dou ao trabalho de responder. De tal forma estou resignado a esta condição miserável que nem sequer paro de escrever esta carta quando me apercebo que são os meus dois filhos retalhados, com uma mistura de metal e carne nos seus corpos. Ouço o ranger dos seus membros. Noto que nas suas mãos está um “mata-sérvios” originário da segunda guerra mundial. Estes sinistros instrumentos era utilizados nos campos de concentração da Croácia, durante a segunda guerra mundial, e serviam para os Croatas matarem os sérvios de uma forma atroz. A ponta destes instrumentos era composta por 3 ganchos pontiagudos desenhados para simultaneamente furarem os olhos ao mesmo tempo que o gancho inferior penetrava na garganta provocando uma morte tenebrosa. Os meus filhos avançam para mim com estes instrumentos em punho e eu nada posso fazer. Estão já muito perto e começam a correr. Sinto o primeiro embate, uma dor, gritos infantis de prazer, os meus olhos...
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Américo Seiva ficou estarrecido com o que tinha acabado de ler. Sorriu. Recostou-se na sua cadeira e ficou a pensar no triste fim que aquele indivíduo teve. Várias coisas não batiam certo. Porquê insistir no facto do leitor também ter um triste fim? Não havia uma justificação no conto para criar aquele momento de suspense, nem sequer um desvendar do porquê.
Não havia também uma justificação para a presença da família do personagem principal ao longo dos vários momentos da história. Começam por estar do lado dos maus, no autocarro, inclusivé com a mulher a ser apalpada pelo revisor/condutor de autocarro, depois aparecem no meio da multidão a serem esmagados e por fim são os próprios filhos que dão a estocada final com o “mata-sérvios”. A própria personagem que supostamente encarna o diabo também não é consistente. Aparece e desaparece e não justifica o porquê de colocar o personagem principal naquela situação. Não existe uma ponta para se agarrar o passado do personagem principal e de alguma forma justificar a punição que teve.
A menção à banda Type-O-Negative é por demais evidente num conto de terror e a trama até tem alguma graça quando desenvolvida no comboio e depois no autocarro. Mas quando passa para o armazém a coisa roça o piroso.
De qualquer forma foi um bom passatempo. Enquanto a história desfilava perante os seus olhos esteve concentrado e até gostou, mas o desenlace não foi brilhante, ou melhor, poderia ter sido se houvesse um desenlace com alguma justificação.
Havia, de qualquer forma, alguns pormenores estranhos. Américo tinha acabado de comprar bilhetes para assistir ao concerto dos Type-O-Negative. O nº74 era de facto o autocarro de apanhava todos os dias e embora não tivesse filhos, a probabilidade de ter gémeos era grande, pois ele e a mulher estavam com dificuldades em engravidar e desde o ano passado que tinham optado por tratamentos de fertilização. O médico já lhes tinha dito que a probabilidade de terem gémeos era muito superior à probabilidade de terem apenas um filho. Havia inclusivé a probabilidade muito forte de terem trigémeos.
Era estranha também a menção aos 47 dias de cativeiro do personagem. Era o seu prazo para acabar um projecto que muito provavelmente iria mudar o rumo da sua empresa. 47 dias era o que restava para apresentar a sua proposta que no caso de vencer garantiria trabalho durante os próximos dez anos.
Estas coincidências eram de facto estranhas e de alguma forma inexplicáveis. Seria motivo para alarme? Que disparate! É um motivo excelente para uma boa risada.
Fechou a revista e ouviu o seu nome a ser pronunciado pela encantadora assistente do Dr. Saraiva – o seu dentista de sempre que o acompanhou desde que se lembra de ter dentes.
Entrou para dentro da sala e quarenta e cinco minutos depois, saiu com os seus dentes todos tratados e com um sorriso algures entre a novidade e a dor. Dirigiu-se a pé para sua casa e no caminho foi reparando em pormenores ao longo da sua rota, tal como fazia o personagem principal do conto que tinha acabado de ler. Reparou numa quantidade anormal de cartazes anunciando o concerto dos Type-O-Negative, aquele para o qual tinha acabado de comprar bilhetes, para ele e para a sua amiga de infância que o ajudou a crescer e a atravessar todas as fases que mais tarde o vão definir como pessoa. Desse passado restava os Type-O-Negative que finalmente decidiram prestar tributo a todos os seus admiradores neste cantinho. A sua mulher, Isaura, não gostava nada desta banda e por isso sugeriu que Américo matasse as saudades do seu passado juntamente com a sua amiga de sempre – Luísa. Sugeriu com uma pontinha de ciúme que Américo bem a sentiu, mas que não fez caso e que na verdade aproveitou a sugestão dela logo à primeira, pois certamente seria muito mais divertido viver estes momentos com alguém que atravessou juntamente com ele os tumultosos mares da juventude e da adolescência.
O concerto era já amanhã. Tinha trabalho para acabar em casa. Dirigiu-se para o metro e meia hora depois chegava a sua casa, vazia, pois a sua mulher Isaura estava no estrangeiro a participar num seminário internacional. Sentou-se à frente do seu computador e durante horas dedicou-se a enriquecer o seu projecto com data prevista de entrega a 47 dias do dia presente. Pensou várias vezes no conto e sempre que o fazia, sorria com as coincidências entre os detalhes da história e os detalhes da sua vida. Foi-se deitar e dormiu o suficiente para acordar bem disposto e com força suficiente para encarar mais um dia de trabalho.
Após o pequeno-almoço ligou logo para a Luísa para a relembrar do concerto de logo à noite e para combinar o encontro. Durante a conversa, Luísa disse-lhe que lhe aconteceu uma coisa engraçadíssima e que estava em pulgas para lhe contar, mas que o faria mais logo quando se encontrassem.
Cerca de 1 hora antes do início do concerto, Américo apitou à porta de Luísa para que ela descesse. Dez minutos depois, Luísa entrou dentro do seu carro, com o seu sorriso inconfundível e histérica por finalmente poderem saciar um desejo que lhes tinha sido privado durante a sua adolescência – assistir a um concerto da sua banda favorita – Os Type-O-Negative.
Durante o trajecto só falaram disso e quando chegaram ao concerto entraram imediatamente para o hall de entrada para comprarem uma t-shirt para ficar como recordação do concerto.
Beberam uma imperial e entraram propriamente dentro da sala de espectáculos. Falaram de muitas coisas, de como o emprego estava a decorrer, da gravidez adiada do Américo e da Isaura, dos vários casos que a Luísa mantinha ao mesmo tempo por ter deixado de acreditar nos homens, dos últimos livros que tinham lido, etc. A meio desta torrente de informação, Américo lembrou-se da história fantástica que esperava ouvir da Luísa. Ela gritou um Ah! e riu-se. E então contou-lhe que enquanto tomava o pequeno-almoço num café do seu bairro, à cerca de uma semana atrás devorou um conto de terror que embora não sendo nada de especial, apresenta umas coincidências extraordinárias com a sua vida, a começar pela referência do personagem principal aos Type-O-Negative. Américo arqueou as sobrancelhas e murmurou um Ena!. Vê lá tu que me aconteceu precisamente a mesma coisa enquanto esperava por ser atendido no meu dentista. A sério? – perguntou Luísa. Naquele momento, baixaram as luzes, surgiram fumos no palco. Luísa deu uma cotovelada no braço de Américo, confirmando que estava a chegar a hora. Américo, no entanto, queria continuar a conversa para tentar perceber se as coincidências eram as mesmas, mas Luísa fez-lhe um sinal para se calar e concentrar no palco.
O vocalista dos Type-O-Negative, surgiu em palco, enorme, com um ar diabólico e chegou-se ao microfone que tinha um formato estranho. Tinha três pontas, duas em cima e uma outra mais pontiaguda em baixo. Ouviu-se a voz dele, mas da boca não saiu um único movimento. Luísa olhou aterrorizada para Américo, também ele lívido pelo que acabava de assitir. As vozes ecoavam na cabeça deles enquanto o vocalista dos Type-O-Negative ria-se, guturalmente, sem abrir a boca. Agarraram-se um ao outro, Luísa a gritar de pavor e Américo estupefacto com o que estava a assitir. O vocalista dos Type-O-Negative pegou no microfone, agora facilmente identificável com um “mata-sérvios” e a multidão que assistia ao concerto começou a correr para eles, a atropelarem-se para chegar a eles, com sangue a escorrer por todos os lados e com vozes a ecoarem nas suas cabeças acusando-os das maiores atrocidades e lembrando-os de que eram seres humanos desprezíveis e que não mereciam viver.
Acordaram num quarto, doridos, com um poster dos Type-O-Negative na parede, uns enlatados, uma cadeira barcelona e um velho computador no chão da sala.
Sabiam o que tinham de fazer...

segunda-feira, abril 16, 2007


Finalmente estamos a chegar ao verão, ao calor, ao bom tempo. A luz de Lisboa está-se a revelar, sem timidez e com a força bruta que normalmente emprega nesta altura. O nosso verão está a chegar, o nosso bom tempo está a sobrepôr-se ao frio e aos dias incertos. E assim vai continuar até o próximo Outubro. Falo do nosso, porque nunca vi uma luz semelhante à luz de Lisboa. Aquela que mais se aproxima é provavelmente Atenas, mas a cidade é horrível e o encanto não se revela através da sua luz. É nesta altura que Lisboa se transforma numa cidade mágica, num lugar único que me enche de orgulho e que me posiciona como um cidadão sortudo. Venha o verão, venha a luz, estamos ansiosos com a chegada da Lisboa.

É esta Lisboa que eu a partir da próxima semana vou ter acesso na primeira fila. Todos os dias vou passar a acordar com Lisboa inteira aos meus pés e todos os dias vou dar graças por ter este previlégio. A casa está quase pronta e a mudança prestes a iniciar-se. Tudo novo, espaço grande e uma varanda de sonho são os principais atributos desde meu novo espaço de vivência. Vai ser a minha 5ª casa em quase 12 anos e provavelmente não desejo muito mais do que isto. Estou muito contente depois de cerca de 1 ano e meio de espera e muito milhares de euros investidos. O desânimo foi uma constante ao longo de todo este doloroso processo, mas agora as coisas estão a mudar de figura. Só faltava o sol e a luz... Agora já não falta nada.

A carolina já diz pai e mãe e também chocolate e pé e pijama. Já anda como se o diabo estivesse à solta no corpo dela e tagarela num dialecto imperceptível mas cheio de intenção. O afonso é mais discreto neste novos avanços. Preocupa-se mais com os objectos e com a forma como desatarrachar tampas e parafusos. É mais dado a outras coisas, como se estivesse sempre a trabalhar e a resolver problemas e situações. É engraçado também.

Como pensamento positivo para hoje deixo a banda Jesus and Mary Chain. Tenho andado a ouvir a sua discografia e fico sempre impressionado com a qualidade das suas músicas. á levam com mais de 20 anos de carreira e o seu som continuo actual. Nunca tiveram grande sucesso por se manterem fieis aos seus princípios. Por exemplo nunca se mudaram para uma editora major. Independentes até ao fim e isso tem muita graça tendo em conta todos os esquemas comerciais nos quais a música está envolvida nos dias que correm. As suas canções são autênticas e fáceis. Têm um som uniforme e de fácil reconhecimento ao longo de toda a sua obra. A sensação que se tem é que as músicas e o espírito alternativo lhes sai assim... sem mais nem menos... sem esforço. É-lhes inato e natural. Quem dera a muitas bandas conseguirem algo assim tão puro, tão genuíno, tão bom. Marcaram-me na minha juventude. Quando ouvi os seus primeiros albúns senti uma revolução cá dentro. O feed-back das guitarras com a melodia por trás impressionou-me. Foram uma das primeiras bandas que assisti ao vivo no pavilhão do restelo, juntamente com a Zá, já lá vão quase 20 anos. Foi um concerto razoável, na altura desiludiram-me um pouco, hoje em dia dou-me por muito contente ter estado lá. É mais uma história para contar aos meus filhos. Hoje em dia olho para trás e considero os JMC uma etapa na música pop7rock/punk seja lá o que for. Há poucas bandas assim.

terça-feira, abril 10, 2007


Escrever é um exercício que exige treino, disciplina e muita rotina. Rotinar os dedos, ou mais poeticamente, a caneta (cada vez mais rara nos dias que correm) é o segredo para se escrever e alimentar entre outras coisas um blog, um diário, uma crónica, uma coisa qualquer. Tenho andado a escrever pouco neste blog, mas por outro lado tenho escrito algumas coisas para os meus clientes e iniciei á cerca de dois dias uma ventura de escrever um conto de terror para o cineclube de terror de Lisboa. Tem sido uma experiência óptima. Escrever com objectivos é muito mais fácil, por um lado, por outro o cuidado que se coloca nas linhas que saem da caneta tem de ser muito maior pois trata-se de uma peça a ser apreciada por outros em que, indubitavelmente, a minha pessoa estará reflectida nela e sujeita a avaliações externas e por isso subjectivas.

Tenho lido bastante também. Ultimamente deu-me para ler coisas relacionadas com a minha profissão e com as últimas tend~encias da comunicação e do marketing. E tem sido muito agradável. Tenho descoberto tendências que realmente me interessam e que vão de encontro a bastantes considerações sobre a técnica da comunicação que possuo, embora nunca tenha tido a capacidade de as verbalizar. Chegar a essa conclusão é extremamente agradável. Finalmente estamos a deixar cair esterótipos estúpidos do marketing em que um mercado é visto como um campo de batalha e as empresas são forças que guerreiam entre si, esquecendo aquele que facto mais interessa - o consumidor. Estamos a atravessar uma revolução com a banalização da internet e com as novas possibilidades que ela nos oferece. Não é uma nova economia como advogavam há uns anos atrás. É sim um novo meio que está a transformar os nossos hábitos de consumo e a forma das empresas abordarem os mercados e os seus consumidores.

Num livro fantástico que recentemente li, escrito pelo Chris Anderson entitulado de "A cauda longa", este autor advoga que os hits estão a acabar. Esta é uma consequência da enorme capacidade que uma loja on-line oferece, sem custos de armazenamento e sem limitações de espaço, ou seja, com uma escolha tão grande, os consumidores têm a liberdade de percorrer todo um espectro que antes estava resumido à capacidade de uma prateleira dentro de uma loja. Daí a necessidade da criação de hits. Estes surgiam como consequência de uma incapacidade de respeitar os gostos dos consumidores, porque de facto não era possível derivado das limitações físicas de uma loja. Com as lojas virtuais isso acabou e mais... com a introdução de ferramentas de aconselhamento e opiniões emitidas pelos anteriores compradores, está-se a dar lugar a um verdeiro respeito pelos gostos das pessoas e a uma quantidade enorme de livre escolha. Daí a longa cauda que é uma representação de um gráfico de vendas. No início estão os hits com vendas absurdas e depois ao longo da cauda estão os restantes. Mas cada vez mais estes restantes assumem uma importância maior do que os hits, quer em termos quantitativos, quer em termos relativos. A regra dos 80/20 está pela hora da morte. estamos a chegar a uma regra dos 99/100. Muito interessante.

Os meus filhos já andam plenamente. A Carolina passa o dia a andar e o Afonso, embora mais preguiçoso, também já domina as suas pernas.

A nossa casa está pronta (finalmente!) Só falta a cozinha. Vamos mudar este mês.

Como pensamento positivo para hoje, deixo o livro do Chris Anderson. muito inteligente, extremamente bem escrito e potenciador de ideias para encara este novo e importante estágio que estamos a atravessar. Somos uns sortudos. Estamos em plena revolução de hábitos, sociais e de consumo e estamos a assistir da bancada VIP com todas as possibilidades de saltar para o palco. Estou optimista...